domingo, 7 de fevereiro de 2010

Apenas um detalhe

A família reunida na sala diante da televisão. O pai, emburrado porque acabou de ver o time perder na decisão do campeonato brasileiro, rói as unhas e acompanha com os olhos o vôo de um mosquito ao redor da antena. Detesta novela, mas já que é o último capítulo, o incômodo de ver a mulher de posse do controle remoto não é tão grande. A filha aguarda ansiosamente os próximos comerciais.
- Mãe, pai, eu tenho uma coisa pra dizer.
O pai, como quem nada ouviu, avisa:
- Vou pegar uma cerveja.
- Vê se não suja nada que eu já limpei a cozinha – dá uma olhada para o marido, que sai da sala arrastando os chinelos. – Quer ver como ele vai deixar louça suja na pia? Só espera. Esse homem não tem mais jeito. Humberto!
Estão as duas na sala. É agora ou nunca. A filha chega mais perto. A mãe não desgruda os olhos da TV.
- O Carlos vem aqui hoje.
- Isso lá é hora de visita, menina?
- Ele quer falar com vocês.
- Tem que ser hoje que eu estou vendo minha novelinha pela última vez?
- Tem que ser logo, mãe.
- O Humberto deve estar dando conta do queijo que eu comprei hoje. Anda, Humberto!
O pai volta lambendo os dedos. Cerveja na mão, afunda com prazer no buraco deixado na poltrona.
- Encheu a pança, foi? Depois vem reclamar que tá barrigudo. Qual é o babado, afinal? – dirige-se à filha.
- Eu e o Carlos resolvemos nos casar.
A mulher se pisca toda. Ainda vai acabar perdendo o melhor da novela: descobriram que a boa moça enganou a todos e fugiu com o traficante bonitão e o dinheiro que a família levou anos para juntar dando duro na padaria.
- Como?! – pergunta, sem desviar totalmente a atenção.
O pai quase se afoga. Lá vem o maldito mosquito encher o saco. Dá um tapa no ar sem muito sucesso. O mosquito continua rondando. Irritado, finalmente se mete na conversa:
- Vocês não acabaram a faculdade ainda, e que e eu saiba esse rapaz não tem emprego. Vocês vão viver de quê? A família dele já sabe?
A mulher interrompe, satisfeita, para comentar a novela:
- Eu sabia que esses dois iam conseguir escapar!
O pai, preocupado, caça o mosquito.
- Pra quando vai ser?
- Domingo. Foi o único dia disponível na igreja. Senão só daqui a dois meses.
E daí a mulher cai na real:
- Mas é depois de amanhã!!!
- Consegui, matei o filho da puta! – grita o pai, eufórico por ter liquidado o mosquito.
- Não dá. Tá muito em cima.
Pai e mãe ao mesmo tempo:
- Por quê?!
- Eu tô no último mês.
Boquiabertos, os dois notam a barriga avantajada da filha. Olham para a televisão em busca de resposta, e se dão conta de que a novela acabou.

9 comentários:

Ana B. disse...

uahahahaha

só faltou perguntarem "no último mês de que?"

Anônimo disse...

Alline, texto perfeito! Uma situação tragicômica sobre a alienação causada pela TV. Adorei!

Um beijo!

Carmem Tristão disse...

ei aline. bom dia. tem como não publicar?

Tem gente que é assim de verdade. Essa situação está muito mais perto da gente do que a gente imagina.

A maior alegria da minha sogra é quando passo uns dias na casa dela, em Brasília. a gente brinca, ri, vai ao cinema, dorme juntas, faz pique-nique na cama, lemos juntas, fazemos guerra de pipoca.
mas o dia-a-dia dela é assim:
- filho, nora e dois netos moram com ela.
- netos ficam no computador até 5h da manhã.
- acordam às 14h, vão à cozinha, pegam um pão e voltam para o computador.
- se tiver gente na cozinha, eles dão meia-volta.
- nunca na vida os vi dando bom dia a alguém. quisá fazendo a refeição à mesa.
- passam o dia inteiro dentro de um quarto fechado fedendo a suor de adolescente.
- o mais velho foi pela tereira vez reprovado no 1o. ano do segundo grau. Como já tem 20 anos, esse ano ganhou um carro.
- nora vive sabotando. quando faz um bolo, chega pra minha sogra e diz: "fiz um bolo pra mim e para os meninos".
- filho passou 15 dias trabalhando em são paulo. quando retornou, deu um beijo na testa da esposa e foi direto para o computador.

minha sogra já sofreu demais tentando socializar com eles. até dinheiro ela dava para os meninos. mas ela cansou... aí fico aqui pensando: o que vai ser dessa família????

Anônimo disse...

Isso é caótico, mas minha vizinha, conseguiu levar a gravidez até o fim, sem os pais, nem ninguém desconfiarem! Descobriu-se qdo teve o bebê no banheiro de casa. Ela disfarçou como se tivesse apenas acima do peso. Já era mãe solteira. Não imagino o sentimento ou perturbação com que ficou para esconder isso até não poder mais.
Bjos, querida.

Luna Sanchez disse...

Assustadoramente real, Alline. A vida está banalizada.

=\

Beijo.

ℓυηα

Alline disse...

Nó:
Gente mais desligada, né?

Maycon:
Não é o que a gente vê aqui e ali, na casa dos amigos, dos vizinho, na nossa mesmo?
Outro beijo!

Carmem:
Acho que tua sogra precisa fazer uma faxina urgente em casa... rsrs
Todo mundo merece ser feliz, com ou sem família no pé.

Reyel:
Olha, um caso real! E eu achando a situação toda muito surreal... tsc, tsc, tsc. rs
Sorte pra essa moça.
Um beijo pra ti!

Luna:
E faz tempo. E tem gente que não nota. *=O
Beijão!

Milene disse...

medo, realidade e alienação. Não quero pensar nisso agora rsrs.
Muito bom o texto!!!!!
Beijocas Aline, qualquer dia eu volto!!

Albatroz disse...

hilário, e olha que acontece!!!!
Não sei como não falou disso durante a transmissão do jogo, como sempre acontece ( mulher adora interromper jogo..rs )

Albatroz disse...

Imaginar a cena. Uma vez meu cunhado deu esta noticia quando estavamos em uma apresentação do Enio Moricone. A trilha sonora dos filmes aumentou o impacto da noticia...rs