A MALA
Uma mala foi esquecida na rodoviária. Mala surrada, com um cadeado envolvendo as duas alças. Lá estava o peso morto, largado num canto. Ninguém deu muita atenção nem fez questão de impedir que o mendigo a carregasse. A menina de vestido azul foi a única a perceber que o homem a arrastava para o portão de saída. Ficou olhando a cena, até que sua mãe a puxou pelo braço. O ônibus chegara.
O mendigo não foi longe com aquele trambolho, parou no bar da esquina para tomar um trago. Espalhou-se no balcão sem cerimônia e pediu "umazinha", catando as últimas moedas no bolso e largando-as sobre a fórmica encardida. Bebeu uma e foi posto para fora pela própria dona. Sem a mala.
Na calçada cruzou com um casal jovem e assustado, que pelo jeito acanhado de ambos vinha do interior. O rapaz fez o pedido sem tirar o olho dos ovos na conserva perto do caixa. A moça só desgrudou do braço de seu acompanhante na hora de se atracar com o sanduíche de pão com mortadela.
Quando os dois saíam, fome saciada, a moça viu a mala espremida entre as pernas dos que bebiam no balcão e não pensou duas vezes, agarrou as alças e tratou de apressar o passo sob o olhar atônito do rapaz. Difícil foi entrar com ela no ônibus lotado e conseguir passar na catraca, mas a moça deu um jeito, na esperança de ter roupas novas e limpas.
Tudo corria bem, até que alguém gritou "assalto" e começou o empurra-empurra. O motorista ainda prosseguiu por mais duas quadras, enquanto os assaltantes pegavam o que podiam com canivetes em punho. Um deles, baixote e cheio de espinhas, mandou parar o ônibus. Antes, porém, tascou um beijo na loira de vermelho e foi o primeiro a sair, a boca borrada de batom. Os outros correram atrás e desapareceram, pulando o muro de uma escola. Os passageiros se olharam sem saber exatamente o que fazer, e o jovem casal, que não estava acostumado com essas coisas, saltou no próximo ponto, e a moça nem quis mais saber da mala.
No ponto final os que ficaram comentavam com excitação o ocorrido. O motorista olhou para o cobrador, que olhou para a mala. Se tivesse algo de valor ali não teria sido deixada para trás assim, ambos provavelmente pensaram. E como ela não tinha dono mesmo o cobrador se incumbiu de levá-la embora.
A sogra e os dois filhos estranharam ao vê-lo entrar em casa com a mala debaixo do braço. A algazarra das crianças trouxe para a sala a mulher, as cunhadas, os três irmãos e a avó, curiosos, que ficaram vigiando a mala enquanto ele ia atrás do martelo. O suspense estava criado.
Após algumas pancadas certeiras, o cadeado comido de ferrugem saltou longe. Um olhou para o outro, todos olharam para a mala. O cobrador suava, agora temeroso pelo que podia encontrar, mas igualmente ansioso, querendo acabar de uma vez com o mistério.
Com cuidado, abriu a mala, e o que era agonia virou decepção ao ver roupas comuns de mulher, uma escova de dente velha, batom, pente, um vidro de perfume barato e um pequeno livro de orações. Num canto, quase escondida, ou esquecida, a carteira de identidade de uma tal de Mariléia Enedina dos Santos.
Tanto esforço por umas porcarias usadas!
O ônibus sacolejava e as pessoas reclamavam sem parar do calor. Como de costume, a maioria das janelas estava emperrada. Mal dava para ouvir o rádio, já no último volume graças ao barulho ensurdecedor das conversas e do motor. Entre uma parada e outra, o cobrador se distraía com o livrinho de orações da moça da mala. Marcava as páginas com a identidade dela, enquanto o resto das bugigangas permaneciam bem escondidas embaixo de sua cama, na mala.
No momento em que o locutor anunciou a reportagem policial, todos voltaram a atenção para o rádio. A notícia do assassinato de uma prostituta no banheiro da rodoviária provocou uma onda de comentários sobre o aumento da violência. Ela havia sido estuprada e degolada, e cogitava-se a hipótese de ela ser Mariléia Enedina dos Santos, desaparecida há vários dias, e que, segundo o depoimento de outras prostitutas, estava fugindo do antigo cafetão por causa de uma dívida ligada a drogas.
Então o cobrador abriu o livrinho. Era a mesma mulher! Achou-a um pouco triste na foto, mas ainda assim bonita. Parecia até a prima Gislaine, de repente. Paixão braba não se esquece de uma hora para outra, e olhar para Mariléia era lembrar de um tempo passado, e da prima que fugira de casa recentemente para viver com um peão de obra. Já que não podia fazer mais nada, rezou em pensamento uma Ave-Maria pela alma da pobre da Mariléia e recebeu a contragosto a nota de cinquenta reais do homem que acabara de entrar no ônibus. Assim o troco não ia durar até o final da viagem.
Uma mala foi esquecida na rodoviária. Mala surrada, com um cadeado envolvendo as duas alças. Lá estava o peso morto, largado num canto. Ninguém deu muita atenção nem fez questão de impedir que o mendigo a carregasse. A menina de vestido azul foi a única a perceber que o homem a arrastava para o portão de saída. Ficou olhando a cena, até que sua mãe a puxou pelo braço. O ônibus chegara.
O mendigo não foi longe com aquele trambolho, parou no bar da esquina para tomar um trago. Espalhou-se no balcão sem cerimônia e pediu "umazinha", catando as últimas moedas no bolso e largando-as sobre a fórmica encardida. Bebeu uma e foi posto para fora pela própria dona. Sem a mala.
Na calçada cruzou com um casal jovem e assustado, que pelo jeito acanhado de ambos vinha do interior. O rapaz fez o pedido sem tirar o olho dos ovos na conserva perto do caixa. A moça só desgrudou do braço de seu acompanhante na hora de se atracar com o sanduíche de pão com mortadela.
Quando os dois saíam, fome saciada, a moça viu a mala espremida entre as pernas dos que bebiam no balcão e não pensou duas vezes, agarrou as alças e tratou de apressar o passo sob o olhar atônito do rapaz. Difícil foi entrar com ela no ônibus lotado e conseguir passar na catraca, mas a moça deu um jeito, na esperança de ter roupas novas e limpas.
Tudo corria bem, até que alguém gritou "assalto" e começou o empurra-empurra. O motorista ainda prosseguiu por mais duas quadras, enquanto os assaltantes pegavam o que podiam com canivetes em punho. Um deles, baixote e cheio de espinhas, mandou parar o ônibus. Antes, porém, tascou um beijo na loira de vermelho e foi o primeiro a sair, a boca borrada de batom. Os outros correram atrás e desapareceram, pulando o muro de uma escola. Os passageiros se olharam sem saber exatamente o que fazer, e o jovem casal, que não estava acostumado com essas coisas, saltou no próximo ponto, e a moça nem quis mais saber da mala.
No ponto final os que ficaram comentavam com excitação o ocorrido. O motorista olhou para o cobrador, que olhou para a mala. Se tivesse algo de valor ali não teria sido deixada para trás assim, ambos provavelmente pensaram. E como ela não tinha dono mesmo o cobrador se incumbiu de levá-la embora.
A sogra e os dois filhos estranharam ao vê-lo entrar em casa com a mala debaixo do braço. A algazarra das crianças trouxe para a sala a mulher, as cunhadas, os três irmãos e a avó, curiosos, que ficaram vigiando a mala enquanto ele ia atrás do martelo. O suspense estava criado.
Após algumas pancadas certeiras, o cadeado comido de ferrugem saltou longe. Um olhou para o outro, todos olharam para a mala. O cobrador suava, agora temeroso pelo que podia encontrar, mas igualmente ansioso, querendo acabar de uma vez com o mistério.
Com cuidado, abriu a mala, e o que era agonia virou decepção ao ver roupas comuns de mulher, uma escova de dente velha, batom, pente, um vidro de perfume barato e um pequeno livro de orações. Num canto, quase escondida, ou esquecida, a carteira de identidade de uma tal de Mariléia Enedina dos Santos.
Tanto esforço por umas porcarias usadas!
O ônibus sacolejava e as pessoas reclamavam sem parar do calor. Como de costume, a maioria das janelas estava emperrada. Mal dava para ouvir o rádio, já no último volume graças ao barulho ensurdecedor das conversas e do motor. Entre uma parada e outra, o cobrador se distraía com o livrinho de orações da moça da mala. Marcava as páginas com a identidade dela, enquanto o resto das bugigangas permaneciam bem escondidas embaixo de sua cama, na mala.
No momento em que o locutor anunciou a reportagem policial, todos voltaram a atenção para o rádio. A notícia do assassinato de uma prostituta no banheiro da rodoviária provocou uma onda de comentários sobre o aumento da violência. Ela havia sido estuprada e degolada, e cogitava-se a hipótese de ela ser Mariléia Enedina dos Santos, desaparecida há vários dias, e que, segundo o depoimento de outras prostitutas, estava fugindo do antigo cafetão por causa de uma dívida ligada a drogas.
Então o cobrador abriu o livrinho. Era a mesma mulher! Achou-a um pouco triste na foto, mas ainda assim bonita. Parecia até a prima Gislaine, de repente. Paixão braba não se esquece de uma hora para outra, e olhar para Mariléia era lembrar de um tempo passado, e da prima que fugira de casa recentemente para viver com um peão de obra. Já que não podia fazer mais nada, rezou em pensamento uma Ave-Maria pela alma da pobre da Mariléia e recebeu a contragosto a nota de cinquenta reais do homem que acabara de entrar no ônibus. Assim o troco não ia durar até o final da viagem.